19 agosto 2010

Resposta ao Professor Nilton Lavigne

Por que não aceitamos a dor? Tentar aceitar a dor foi o que exercitaram os estóicos de todos os tempos, místicos ou não. O budismo se fundamenta em soluções para a dor. Segundo Sidarta, a dor tem suas raízes numa condição mental alienada, presa ao sensualismo, a padrões puramente sensíveis. Teoria que pode ser casada com as novas ideias dos neurocientistas, a propor centrais reativas (reações químicas) associadas às afecções somáticas, enfim, criando uma interpolação entre dores físicas e dores da alma. A dor não é condição exclusiva do homem. Num plano puramente somático ela funciona como um alerta de que algo não vai bem. As enxaquecas eventuais, por exemplo, não se tratam com paracetamol ou afins, pois que estes são meros paliativos. A dor, nesse caso, é um alarme e visa nos alertar de que algo não vai bem. Se estão a roubar nosso carro e o alarme do mesmo ecoa, significa que devemos tomar uma atitude, ao invés de simplesmente desligar o alarme. Ou seja, o problema não está no alarme, mas no roubo do carro, no ladrão. Desta forma, a dor física é mero sinal, trata-se de nosso organismo falando, sentenças do tipo: “Vá ao dentista”, “Cuide da alimentação”, "Evite álcool” etc.
Mas, e a dor subjetiva? ... Bom, eu mesmo já me estranho tendo que falar em duas dores, em subjetivo e objetivo, quando sei que tal classificação é útil silogisticamente, porém, completamente destituída de realidade. Aquilo que Bachelard chamou de fenomenotécnica, ou seja, a ampliação da percepção objetiva humana a partir do uso de equipamentos cada vez mais sofisticados, abriu-nos uma dimensão repleta de paradigmas inéditos. Observou-se, na Física, a necessária presença de uma consciência para que certo fenômeno ocorra ou não ocorra. Mas, como as disciplinas duras são aparentemente impessoais (ninguém sofre se um átomo se decompõe), são as aberturas nas ciências humano/naturais que nos causam espanto. Por exemplo, estudos do núcleo caudado (uma estrutura cerebral de 65 milhões de anos) mostram que ele se torna ativo quando estamos apaixonados. Como esse núcleo é um dos responsáveis pelos nossos movimentos, conclui-se que nosso ir e vir romântico é determinado bioquimicamente.
O amante que pensa na amada 95% do dia mudaria seu foco se fossem diminuídos os níveis de dopamina ou norepinefrina de seu cérebro. Toda a construção dos amantes: poemas, telefonemas quilométricos, energia alta, motivação, mudança de vida, e até a morte por amor, não passa de altas dosagens de dopamina e norepinefrina, irradiando-se da área tegmentar ventral (ATV) direita no mesencéfalo, através de seus axônios em forma de tentáculos. O mais espetacular, entretanto, deve-se ao fato de que tudo isso ocorre como estratégia evolutiva. Os neodarwinistas começam a observar comportamentos sutis das estruturas neuronais, visando a perpetuação do padrão genético de nossa espécie. Nesse âmbito, as angústias, sofrimentos, ansiedades, dores, enfim, advindas de uma separação amorosa, tem como propósito nos transportar para um novo padrão evolutivo. Aos poucos, vamos decifrando a clássica dor da alma, que se mostra cada vez mais orgânica e tratável farmacologicamente.
Você também diz que há evidências, pautadas na realidade, de que não fomos antes e não seremos depois. Há, entretanto, um paradoxo nessa afirmação. Repare: certamente você se refere à duração de sua consciência individual, não é mesmo? A mesma consciência individual que vê na realidade (a realidade, portanto, dessa consciência individual) elementos suficientes para negar um antes e um depois de si mesma. Ora, como pode uma consciência individual, circunscrita a si mesma, apossar-se de uma realidade ampliada? Apossar-se de uma realidade para além dos limites individuais? Você não pode ser convencido por espiritualistas et.al. na mesma medida em que aqueles ignoram a visão sartreana de existência. Todos estamos aprisionados por essa circunferência que nos torna reféns dos nossos próprios limites perceptivos. Tal atitude é também tautológica, pois sou eu afirmando o que eu sou e, é claro, haverá sempre uma identidade entre ambos. Porque podemos perguntar: “Está certo, continuamos como indivíduos depois da morte, e daí?”, e também: “Ok, morremos e acabemos, é daí?”.
No mundo, há milhões de pessoas que afirmam manter contatos com outras gentes já mortas, como também há milhões de pessoas que jamais passaram por algo parecido, e que negam radicalmente tal possibilidade. Nos dois casos, há o risco inevitável do dogma, para um lado e para o outro. Ateus e crentes cessam suas investigações e vão viver suas histórias de êxtases ou angústias. Essa necessidade que temos de ter uma definição, um ponto final, quando nossa vida tão mais rica seria se sempre reticenciássemos.
Não foram os existencialistas os primeiros a considerar a morte. Esse é o tema recorrente na história da humanidade e, certamente, os significados imagéticos construídos através dos milênios, são subprodutos dela. Porém, biologicamente a morte não existe. É uma mesma quantidade de carbono se transformando: abelha virando flor; flor, renascendo rato; rato, formatado em pão. A natureza não se importa com indivíduos, quer-nos procriadores, atiçadores de sementes. A vida, apenas a vida importa à natureza. Calhou de estarmos vivos e, mais que isso, de termos uma consciência de que estamos vivos, ao contrário dos animais, concebemos a morte como verdade factual. Agora, entre tal constatação e a angústia há enorme lacuna. A angústia não é em si, verdadeiramente ela não passa de um fenômeno interpretativo, a partir de uma projeção temporal construída pelo sujeito. Não é a morte quem nos angustia, mas a incapacidade de entendermo-nos parte de um sistema maior e eterno: o fluxo da vida. A dor, em Sartre, é a mesma do feto que morre para vir a ser bebê, e deste, ao se tornar criança etc.
Não desejamos mudar nunca. Achamos logo uma zona de conforto e queremos ali permanecer para sempre. É, ao mesmo tempo, um resquício da tradição ontológica antropocêntrica, como um menino zangado porque de uma hora para outra descobriu as falácias do pai, Sartre indignou-se com a guerra e os milhões de mortos. Fora traído por Deus, restou-lhe a dor e toda uma filosofia para justificá-la. Há, nele, um cristianismo de fundo bem à vista, reformulemos a frase citada e teremos: “Ah, Deus existe, a vida é eterna, a vida é uma paixão que faz sentido”. É isso que Sartre está a dizer, às avessas. Magoou-se, ficou triste.
Certa vez, dando aula numa turma de 6ª série do Gato de Botas, informei aos alunos (que tinham em média 12 anos), que em breve eles se tornariam adolescentes e se rebelariam contra os pais. Foi uma tragédia! Alguns choraram e disseram que jamais brigariam com os pais, ficaram zangados comigo. Os mais sensíveis disseram não querer deixar de ser criança. Mas, para a criança, a adolescência é inevitável. Isso não implica que ela viva angustiada, julgando ser inútil a paixão da infância. Inútil mesmo é projetar a consciência para o futuro, esse ente que nunca chega, pois irreal.
Quando adultos, na busca de força para suportar tais projeções, elegem-se religiões, drogas, artes e outros truques. Alguns acabam se apegando a própria dor, que então funciona como um substituto do pai eterno abandonado. Mas dor é sintoma. Provém dos apegos. Estes, da nossa condição hominal. Os homens se apegam, os cães ladram e os gatos miam. É assim. Mas o homem é também uma ponte, uma condução para outra possibilidade. Por isso, os exames com ressonância magnética mostram que quando fitamos uma fotografia, sobretudo se de alguém a quem amamos, uma série de setores neocorticais são estimulados, e assim, somos capazes de tornar esse outro eu mesmo, esse instantâneo de fótons, num Deus para as horas de secura, num espelho de virtualidades. Por fim, as evidências de que nossa alma é física nos abrem a possibilidade de o nosso corpo ser igualmente etéreo. Então, quando o carbono que hoje abrigamos compuser algum girassol ou uma lesma, num amanhã de lugar qualquer, quem sabe não esteja ali, naquela flor, naquele molusco, a poesia de nossa existência de hoje? A imortalidade sim, não como a querem os místicos, não como a negam os céticos, mas como condição vital do ser enquanto ele mesmo. Sem dor, porque sendo.

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