24 julho 2011

Amy


Essa vida sem sal,

Burlesca,

Só tem graça

Se há passarinho,

Um fio de mel

Sobre os dentes,

Veludo lácteo,

Asas.

A noite é o pasto,

Os cachos da moça em mim,

Desejo igual e fraterno,

Insone saxofone,

Bem-te-vi e quero-quero.

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28 fevereiro 2011

Carta ao Meu Amor


Não te quero esposa. Quero-te amante, companheira, irmã de todas as horas. Irmã de muitas vidas. Não te quero casa, guarda-roupas, fogão, máquina de lavar, mesa posta. Quero que te dispas da personagem e atinjas, em ti, a mulher profunda, habitante do melhor que és. Não me exijas automóveis, títulos, paletó, nobreza, sucesso, porque o mais nobre de mim para ti é o meu amor. Que nem meu é, apenas me perpassa, vindo do não sei, e te encontra, enlaça-te, escolhe-te, entre outras e dança, e verseja em tua alma. Não me queiras marido. Jamais poderia ser marido. Não sou esses homens que passam, comuns, indo ali e acolá, pagar títulos, investir em ações, planejar viagens formais e diversões obrigatórias. Não sou nenhum deles. Não me queiras marido. Encontramo-nos e isto basta. Olhei nos teus olhos e vi neles um ecoar de cores que em meus olhos se fixaram. Demo-nos as mãos, tivemos os gozos da carne, comungamos de azuis, madrugadas e cânticos diversos, anjos nos acompanharam, borboletas e outros bichos. Onde poderíamos ir mais?

Não te quero esposa. Quero-te amante, companheira, irmã de todas as horas. Irmã de muitas vidas. Não te quero casa, guarda-roupas, fogão, máquina de lavar, mesa posta. Quero que te dispas da personagem e atinjas, em ti, a mulher profunda, habitante do melhor que és. Não me exijas automóveis, títulos, paletó, nobreza, sucesso, porque o mais nobre de mim para ti é o meu amor. Que nem meu é, apenas me perpassa, vindo do não sei, e te encontra, enlaça-te, escolhe-te, entre outras e dança, e verseja em tua alma. Não me queiras marido. Jamais poderia ser marido. Não sou esses homens que passam, comuns, indo ali e acolá, pagar títulos, investir em ações, planejar viagens formais e diversões obrigatórias. Não sou nenhum deles. Não me queiras marido. Encontramo-nos e isto basta. Olhei nos teus olhos e vi neles um ecoar de cores que em meus olhos se fixaram. Demo-nos as mãos, tivemos os gozos da carne, comungamos de azuis, madrugadas e cânticos diversos, anjos nos acompanharam, borboletas e outros bichos. Onde poderíamos ir mais?
Não te vejo numa casa a esperar a morte. Não te imagino descartável, social. O nosso amor é um vulcão, é certo, mas em liberdade, nas nuvens, no indefinido, em Andrômeda, numa fuga para o vermelho cósmico. Dentro de uma casa adoeceríamos. Eu me tornaria teu pai, teu avô, não teria mais nada a te ofertar, além de meus medos, de minhas fraquezas. Eu seria como um Jesus descido da cruz e vivo, sem mais Cristo ser. Porque não sou mais um em teus alfarrábios, mas o teu homem, o teu mestre.
Posso te apanhar e te levar ao ápice das tuas virtudes, despertar-te, libertar-te de todo aprendizado inútil da tua infância de padres. Posso te fazer musa, sacerdotisa. O que somos é sem nome. Somos o sol, amarelos, o mar destruindo pedras, satélites pintando o céu, somos os que vão, sem rumo, os que não retornam nunca mais. Se trancados numa caverna turva, trazendo no peito um crachá de identificação, quem seríamos? Seríamos os mortos, os que contemplaram a luz e tiveram medo, recuaram, preferiram o lodo, a conveniência, o conforto do cemitério. Não poderíamos, defuntos, consumar a criação. No máximo, regaríamos flores em sepulturas vizinhas, aprontaríamos o chá das seis, arrumaríamos malas e passearíamos sobre criptas distantes.
Lembra-te adolescente. As folhas secas que guardavas em teu caderno. É ali que estou e me consumo, até os dias de hoje, nessa eternidade de chuva, de rio. Estou nas tuas alegrias verdadeiras, no verão da tua alma. Deixa-me ser teu príncipe, teu cantor, teu guia das horas tristes e suaves. Aos pés da tua existência, de prontidão, estar sempre sorrindo e flutuando, em minhas vestes de mendigo e minha ambição de passarinho. Minha adorada, emanação do meu silêncio, somos maiores que essa feira-livre onde se negociam ilusões. Quero-te sem esse rol de prendas que te impuseram os antigos. Quero-te sem as fantasias urbanas. Em anáguas te quero, no algodão de camponesa, no vestido de flor.
As mãos em tua nuca serão sempre as minhas. Sou o teu céu, sou o teu Deus. Tudo mais é mentira.


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10 janeiro 2011

O Pior Prefeito da História


Antes de ser político Aderbal tomava duas ou três pingas na venda de Tertuliano, perto do almoço. Simpático e sedento, sem camisa, abuletava-se numa mesa e era feliz. Jamais sonhara ser o prefeito de Uraviba. A vida tem dessas coisas, pensava ele, quando queria se desculpar por tamanha incompetência ante o cargo. Passados dois anos do seu governo, a cidade era unânime em afirmar, “O pior prefeito da história!”. Um título que Aderbal pouco entendia, pois gastou a juventude atrás de mulheres e nunca estudou administração pública, economia ou coisa que o valha. Ainda restavam dois anos para cumprir e muito poderia ser feito. Porém, de que forma? Ele não sabia. No íntimo compreendia que a tragédia não era culpa exclusiva sua. Encontrara uma prefeitura corrompida, um bando de burgueses decandetes a lhe implorar cargos e favores. Aderbal não sabia dizer não e, sempre cedendo, acabou enquadrado por um sistema impossível de controlar. Passivo, deixou-se levar pelos amigos de um antigo chefe político, o coronel Luciano Hagge.


Coronel Luciano Hagge governou Uraviba por dezoito anos. Nesse tempo ficou poderoso. De tropeiro passou a milionário, dono de terras e hoteis de luxo. Todos o temiam e só o maldiziam às costas, timidamente. Havia boatos de crimes de mando, espancamentos, grilagem e outros gestos não gentis praticados por ele, sendo o maior deles o rombo aos cofres públicos. O certo é que coronel Luciano acumulou mais de cento e cinquenta processos, cíveis, criminais, eleitorais. Um homem de muitas varas, frequentador de praias de nudismo e terreiros de Candomblé. Seu sonho em se tornar governador de estado, não obstante, jamais se realizou.
À noite, sozinho em sua cama, Aderbal planeja demintir os secretários - todos eles escolhidos diretamente pelo Coronel. Põe-se a imaginar chegando ao gabinete, austero, valente, decidido: “Estão todos na rua! De agora em diante quem manda sou eu! Chega de ser moleque de recados!”. Pouco antes de adormecer, o prefeito esboça um sorriso para público nenhum, na escuridão. Dorme seco e sonha sendo vaiado por esquálidos negros. Pela manhã é acordado e há um telefone a falar de propinas, superfaturamentos e outros itens de uma pauta infernal. O prefeito se levanta e mesmo antes de escovar os dentes compreende o tamanho de sua covardia. Não mudará nada.
Como posso ser tão fraco? Reflete dioturnamente. Nos dois anos de poder sua grande obra foi mandar capinar a praça principal e colocar cascalho nas três vias centrais do município. Depois, gastou dois milhões em propaganda e trios elétricos para a inauguração. Todos fazem isso! Sussurra ele ao vento. Porque sua consciência dói e mal pode rezar como antes. De fato, Aderbal não é inapto sozinho. Uraviba é uma vilazinha de analfabetos vaidosos, netos de antigos garimpeiros que ganharam muito dinheiro e depois faliram na mesma velocidade. Restou, a tal elite, viver do erário público, revezando em cargos ou fazendo projetos para vender à prefeitura. E assim os anos passam.
Uraviba está entregue às moscas. As ruas sujas e rotas, o comércio mais parecendo uma feira de ratos. Seus habitantes, maltrpilhos, vagam para lá e para cá, vivendo de sexo, cachaça e tiroteios. Cidade sem livraria, sem cinema, sem teatro, sem universidade pública, sem nada que valha à pena. Tem muitos puteiros e putas, e automóveis adquiridos sabe-se lá como. E ainda faltam dois anos! Matuta Aderbal, coçando o queixo. Se pudesse pegava no sono e só acordava uma década depois. Não pode. Precisa conviver com a legião de corruptos, corromper-se também, ouvir as orientações do Coronel, trocar o óleo com as secretárias e com as professoras municipais.
Os órgãos da gestão Aderbal bem poderiam ser chamados de “Secretaria do Desgoverno”, “Secretaria de Destruição de Obras”, “Secretaria do Atraso Urbano e do Mal Ambiente”, “Secretaria da Doença”, e assim por diante. Contudo, por mais que as coisas estejam fora de controle, sem a prueza dos tempos de Tertuliano, mesmo tendo vendido a alma, Aderbal, gosta de observar o esgoto onde no passado funcionou um rio cristalino. Uma ideia obsessiva o domina. Acuado, tenta escutar alguma voz vinda de dentro. Inútil. O seu guardião interior está mudo. Uma capivara caminha serenamente, um bem-te-vi, uma lua toda amarela começa a surgir nos céus. Mas há um martelo na cabeça de Aderbal, um gotejar sem fim: “O pior prefeito da história!”

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