19 agosto 2010

A Galinha do Vizinho


Acordei cedo com os gritos de uma galinha, na casa ao lado. Gritou, esperneou e, por fim, ouvi a lâmina de uma faca cortar-lhe a garganta, um último mover de asas e o silêncio. O som do sangue a escorrer numa vasilha metálica.
Quando eu era menino, na minha casa se matava galinhas. Um dia, eu devia ter uns seis anos, minutos antes do ritual, quando se começavam a amolar facas, agarrei-me às pernas de minha mãe e pedi por tudo que não matasse mais galinhas. Surpresa, achando engraçado o meu pedido, ela e minha avó deixaram a galinha viver.

Na semana seguinte, entretanto, compraram outra ave, na esperança que aquele meu surto não se repetisse. Em vão. Outra vez chorei e clamei o fim do matadouro domiciliar.
Dessa forma, os gestos foram se repetindo. Chegamos a ter mais de vinte galinhas no quintal. Aos poucos, lá um dia, elas foram morrendo de pragas ou velhice. Morrer é natural.
Minha avó, minha tia avó e minha mãe nunca mais voltaram a matar. Estava encerrada uma tradição centenária da família Ribeiro/Caldas.
Meus filhos sequer desconfiam de tal realidade. Nasceram em meio a grão-de-bico, agrião, abacaxi, trigo, pastel de tofu.
Há mais de trinta anos eu não escutava esse canto último de uma galinha sabendo que vai morrer. Era manhã, muito cedo, e o meu dia não seria o mesmo.
Dói-me imensamente a esquálida criança, faminta, analfabeta, indo às drogas. Dói-me o velho de rua em seus papelões noturnos, a mocinha refém do sexo, as injustiças me afetam doridamente. Mas, entre os homens, há algo que me parece justo. Um merecimento contíguo, adquirido, cultural. Os homens em seus confrontos com a morte, esse não saber por que nem quando, a parir religiões, ciências e crenças. Alternando-se entre escravo e senhorio.
Contudo, nenhuma crueldade se iguala a que se pratica com os animais. Uma covardia, um banquete de tolos, nefastos.
Uma vez, trabalhando numa pesquisa de campo, junto a abatedouros, vi a hora em que um boi chegava para ser abatido. Veio numa caminhonete pequena. Quando o carro parou, ele levantou a cabeça e fitou onde estava. Compreendeu de imediato o que se sucederia. Iria ser assassinado. O olhar que veio dos olhos daquele boi invadiu-me a alma e eu chorei muito. Era o olhar da Criança Eterna, sofrendo por todos nós.
Enquanto miseráveis não atrairemos senão miséria. Enquanto insensíveis, habitaremos apenas a face densa do reino.
Quem sabe, um dia, cristãos e judeus concedam uma alma aos bichos, como fizeram com as mulheres, depois com os negros.

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