05 maio 2009

Dez Minutos


Convidaram-me para uma entrevista. A ocasião era para se divulgar o meu recente show musical. Aquele em que eu me despedia de Itabuna para ir morar no Rio de Janeiro. Marcaram para as dezoito horas, “pontualmente”, concluiu a secretária da emissora radiofônica. Mas não seria nesse dia que o meu problema com os minutos se teria resolvido. Cheguei as dezoito e dez, atônito. Para surpresa minha, encontrei o repórter chegando àquele horário, também atrasado dez minutos. Sorrimos e não houve problema. Apenas o dono da emissora se aborreceu por ter que enfiar uma trilha sonora extra. Certamente, alguns ouvintes, acostumados à rotina da precisão estranharam o deslize, mas nenhum telefonaria reclamando.


Sentamo-nos no estúdio, e começamos. Eu, desprotegido do frio intenso causado pelo ar-condicionado, fiquei a elucubrar o tempo, já nem querendo saber sobre a motivação de estar ali. Fiquei pensando, se todos nós, a humanidade inteira, atrasássemos os relógios em dez minutos, ganharíamos dez minutos. Numa projeção, poderíamos ganhar vinte, trinta minutos. Ganhar dias, meses e anos, bastando atrasar mais e mais os relógios, numa convenção inversa a que temos. Nesse caso, os anos começariam a reaparecer. Logo estaríamos em dois mil e oito, dois mil e sete, depois, voltaríamos ao século vinte, a mil novecentos e oitenta, e assim por diante. Curioso seria viver outro mil novecentos e oitenta e nove, um ano marcado pela eleição de Collor de Mello. Quando Raul Seixas morreu, e Luiz Gonzaga morreu, e morreu Nara Leão. Presenciar um novo mil novecentos e sessenta e quatro, sabendo, em paralelo a esse dejavu, existirem golpes militares e comícios inúteis.

Poderíamos também não ir para trás, paralisar os relógios todos num meio-dia, numa meia-noite eternos. Ficar a olhar sóis e luas, indefinidamente, habitando um extenso dia que não acabasse. É claro, em qualquer das possibilidades nós envelheceríamos. Olharíamos nossos cabelos num espelho de 1870 ou numa foto digital de um tempo sem número e, certamente, veríamos um velho, enrugado e de cabelos alvos. Afinal, a velhice nada tem a ver com o tempo. Velhice é desgaste de célula, e a ciência, faz séculos, busca solucioná-la, retardá-la. Em vão. Se um dia conseguirmos parar esse movimento interno (que não é para frente nem para trás, nem para lugar algum) então, pararemos por dentro, assim como estamos parados por fora. Se alguém se mexe é uma consciência, sem espaço, abafada, neurótica. Consome-se a si mesma, sem repouso.

O silêncio atormentador invadiu o estúdio. O entrevistador havia questionado algo, mas eu não o escutei. Não me afligi, pois sei, qualquer pergunta se adéqua a qualquer resposta. Se, por exemplo, interrogam-me: “O marxismo caducou?”, tanto posso dizer “Por mais que se esforcem, os homens terão sempre por questões cruciais o seu drama gnosiológico”, quanto, “Não tem qualquer graça um torneio de futebol em que sempre vencem os times mais ricos”. Qualquer resposta cabe em qualquer pergunta. Também sei que respostas são afirmativas, e afirmativas instauram seguidores, discípulos. Como vimos, seguidores podem surgir antes de mestres. O cristianismo antes de Jesus. O budismo antes de Buda. O platonismo no antigo Egito. Porque a humanidade só repete um único texto, sempre novo para quem o lê pela primeira vez. Por termos transformado carroças em aeronaves e rádios em hdtv, parecemos estar indo, mas, basta um atraso de dez minutos, sincronizado, para se perceber: nada está no lugar. Por isso precisamos de folhinhas. Aquelas com mulheres nuas, expostas em barbearias e oficinas mecânicas.

Entretanto, educadamente, pedi ao repórter que refizesse a pergunta. Porque vivemos numa condição em que só servem as palavras esperadas.

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